
As histórias de Natal mais interessantes raramente são sobre felicidade. Partem do desconforto provocado por uma promessa de harmonia que falha — não como erro, mas como motor do drama. Nesse deslocamento, o Natal deixa de ser redenção automática e se torna um dispositivo capaz de expor fraturas, silêncios e afetos imperfeitos.
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Na literatura, ‘Um Conto de Natal’, de Charles Dickens, costuma ser lembrado apenas como fábula edificante, mas sua força está justamente no percurso desconfortável que antecede qualquer alegria. Antes da redenção de Scrooge, há solidão, medo da morte, recusa do outro e uma vida marcada pela avareza afetiva. O Natal, aqui, não é o ponto de chegada da felicidade, mas o momento em que o personagem é forçado a encarar o vazio que construiu. A alegria final só existe porque o texto se permite atravessar o incômodo — e é esse incômodo que permanece no leitor. O que marca não é a ceia farta, mas o reconhecimento tardio da própria miséria emocional.
Na dramaturgia televisiva brasileira, os capítulos de Natal das novelas funcionam há décadas como espaços privilegiados de ruptura. Longe da conciliação plena, o que se vê com frequência são revelações, mortes, traições ou afastamentos irreversíveis. A ceia, em vez de unir, expõe. Personagens sentam à mesa carregando segredos, ressentimentos e disputas de poder, e o contraste entre o ritual festivo e a tensão latente intensifica o drama. A novela entende algo fundamental: o Natal não apaga conflitos acumulados ao longo do ano — ele os concentra. Por isso, narrativamente, a data é menos um alívio e mais um espelho cruel das relações familiares.
No cinema, ‘De Ohos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, talvez seja uma das utilizações mais irônicas e perturbadoras do imaginário natalino. As luzes, as árvores decoradas e o brilho constante que atravessa o filme não sinalizam acolhimento, mas funcionam como ruído visual, uma cortina que encobre o vazio emocional e o desgaste do vínculo conjugal. O Natal, aqui, é cenário permanente, mas desprovido de calor: ele intensifica a sensação de artificialidade, de desejo deslocado e de comunicação falha. Kubrick transforma a iconografia natalina em máscara — bela, repetitiva e profundamente inquietante. Não há redenção, nem reconciliação plena; o que existe é a constatação incômoda de que a intimidade pode ser atravessada por fantasias, ciúmes e pactos silenciosos. O Natal, longe de organizar o afeto, apenas ilumina suas fissuras.
Esses três exemplos, tão distintos entre si, convergem num ponto essencial: as narrativas de Natal que permanecem são aquelas que respeitam a complexidade do afeto humano. Elas entendem que nem toda relação se resolve, que nem toda ferida cicatriza, e que a convivência possível já é, muitas vezes, o máximo que se pode alcançar. Em um tempo saturado de performances emocionais e imagens de felicidade compulsória, essas histórias oferecem algo mais honesto: o direito ao desconforto.
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Talvez seja por isso que continuemos voltando a elas. Não para aprender a ser felizes no Natal, mas para reconhecer, com algum alívio, que não estar plenamente feliz também faz parte da experiência. Ainda assim — ou talvez por isso mesmo —, um feliz Natal a todos.






